A dupla invisibilidade da mulher superdotada
Um dos principais desafios enfrentados pelas pessoas com altas habilidades é sua invisibilidade, já que poucos conhecem o que é essa condição e outros muitos têm um conceito equivocado do que seja. As mulheres superdotadas, por sua vez, enfrentam essa questão em dobro, como resultado dos traços psicossociais da sociedade em que vivemos. Essa realidade impacta de forma negativa na possibilidade de descobrir, reconhecer e desenvolver o potencial das mulheres com superdotação em qualquer idade.
O papel feminino na sociedade sugere que a mulher se mantenha discreta, sem chamar a atenção por suas habilidades, por suas ideias ou por sua liderança. Isso tem sido evidenciado na criação diferente e nas expectativas familiares em relação às meninas e aos meninos. Quando uma menina, garota ou mulher adulta mostra seu brilho natural, tende a ser repreendida, julgada como inadequada ou soberba. Com meninos, garotos ou homens adultos é o contrário: eles são estimulados a pensar criticamente, a competir e estar entre os melhores. O condicionamento social leva a ala feminina a camuflar sua capacidade intelectual e seus talentos, adaptando-se às expectativas do ambiente, na busca por aceitação.

- Os estereótipos de gênero valorizam a delicadeza, a discrição, a emotividade e a modéstia nas mulheres, em detrimento do pensamento crítico ou da ambição intelectual e profissional. Desde a infância, meninas superdotadas podem aprender a esconder sua inteligência para não se sentirem diferentes, rejeitadas ou “demais”. O que pode levar a trajetórias marcadas por adaptação silenciosa, profundas dúvidas existenciais e até sofrimento psíquico invisível. Aquelas que crescem questionando muito, pensando, sentindo e se expressando de forma intensa costumam ser vistas como “complicadas”, “dramáticas” ou “arrogantes”.
- Jeanne Siaud-Facchin, reconhecida especialista europeia em superdotação, ilustra a constante tensão entre a identidade cognitiva e a pressão social, em seu livro “Trop intelligent pour être heureux ? L’adulte surdoué”, (Inteligente demais para ser feliz? O adulto superdotado”, em tradução livre, sem edição em português): “Para as mulheres, a superdotação pode ser vivida de maneira ainda mais dolorosa, pois choca-se com as expectativas contraditórias impostas pela sociedade. Ser brilhante, mas não demais. Ser sensível, mas não frágil. Ser competente, mas permanecer modesta.”
- Quando essas duas dimensões se cruzam — a invisibilidade da superdotação com a invisibilidade de gênero — recai sobre as mulheres o que chamamos aqui “dupla invisibilidade”. Esse apagamento dobrado pode levar mulheres superdotadas a esconderem quem realmente são, a duvidarem de si mesmas ou a se isolarem emocionalmente.
- E esse funcionamento da sociedade vem de tanto tempo, que falta às mulheres modelos femininos de expressão na História — questão que hoje se trata pelo termo “apagamento feminino”. Faltam, portanto, exemplos em que se espelhar ou com os quais se identificar, reforçando o sentimento de isolamento, de não pertencimento, e, até mesmo, de solidão interior nas mulheres.
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“As mulheres superdotadas muitas vezes dedicaram sua energia a se encaixarem na norma, a ponto de esquecerem seu próprio funcionamento. Sua inteligência se manifesta então de forma discreta, a serviço dos outros, mas raramente em benefício de sua própria realização”, analisa Arielle Adda, psicóloga pioneira no acompanhamento de pessoas com altas habilidades na França, em seu livro “Trouver sa place au travail et s’épanouir” (“Encontrando seu lugar no trabalho e prosperando”, em tradução livre, sem edição em português). Ela resume duramente o impacto de um mundo que não está preparado para acolher as mulheres superdotadas como são: “Quando uma mulher superdotada escolhe o silêncio, não é por falta de coisas a dizer, mas porque ela já entendeu que ninguém vai realmente escutá-la”.
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Portanto, a identificação da superdotação em mulheres, em qualquer fase da vida, é duplamente importante. Reconhecer a condição, desde a infância até a vida adulta, e ter presente esse fenômeno social, permite não apenas o desenvolvimento pleno de potenciais individuais, mas também a redução de impactos negativos, emocionais e sociais, causados pela falta de reconhecimento – além do benefício a toda a sociedade que poderá se favorecer do imenso potencial dessas zebras. É fundamental que tanto homens quanto mulheres compreendam o que é a superdotação e suas múltiplas manifestações, pois essa consciência amplia a possibilidade de que mais meninas, jovens e mulheres adultas sejam devidamente identificadas, acolhidas e estimuladas em seus contextos educacionais, profissionais e pessoais.
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O livro “Deu Zebra! Descobrindo a superdotação”, escrito por duas autoras superdotadas identificadas tardiamente, tem um capítulo inteiro que vai a fundo na questão da mulher superdotada. Confira!