Leta Hollingworth (1886-1939): a americana que usou a ciência em favor do potencial feminino e dos cuidados com as crianças superdotadas
- A norte-americana Leta Stetter Hollingworth nasceu em 1886, bem no período em que as medições de quociente intelectual (QI) ganhavam força na França, para depois se espalhar pelo mundo. Primogênita de três irmãs, teve uma infância difícil, inclusive com a morte prematura da mãe e o abandono pelo pai, que desejava filhos homens — como era comum à época. Talvez não por coincidência, dois grandes legados da sua vida foram o combate à teoria da inferioridade intelectual feminina, por meio de estudos científicos, e o desenvolvimento de métodos diferenciados de educação para crianças superdotadas, indo muito além da medição do QI. E esses são apenas dois exemplos das contribuições que essa extraordinária mulher deixou para o mundo, em sua curta vida de 53 anos.
- De família pobre, perdeu a mãe (no parto da terceira filha) quando tinha 3 anos de idade. Foi criada pelos avós maternos e recebeu educação numa escola diminuta, de apenas uma sala. Aos 12 anos, ela e as irmãs foram levadas – a contragosto – para morar com o pai e a madrasta, em um ambiente de abusos psicológicos (há registros de que o pai era alcoólico). Nada disso a impediu de entrar aos 15 anos na Universidade de Nebraska. Obteve seu bacharelado e sua licenciatura em Literatura inglesa em 1906, aos 20 anos.

- Por dois anos, atuou como professora até sua mudança para Nova Iorque, para se casar com seu colega de faculdade, Harry Hollingworth, que lá fazia seu doutorado em psicologia. Não demorou muito para Leta Hollingworth descobrir que não seria mais contratada para dar aulas em escolas públicas. A sociedade norte-americana nessa época criava impedimentos para as mulheres atuarem no mercado de trabalho, para não “desviarem sua atenção” dos afazeres domésticos e da criação dos filhos.
- Passou três “exasperantes” anos em casa, mas não exatamente parada. Apoiou o marido em pesquisas sobre a Coca-Cola, na avaliação dos efeitos da cafeína nas funções mentais e motoras dos consumidores da bebida. Parte dos recursos que o casal recebeu com esse trabalho foram destinados para o mestrado de Leta Hollingworth em Educação, no Columbia Teachers College, iniciado em 1911. Foi aí que ela virou a mesa!
- Em 1912, criou o The Heterodoxy Club juntamente com outras 23 mulheres altamente instruídas, ativistas e intelectuais feministas, entre elas algumas das mais influentes da época. Esse grupo, do qual foi integrante ativa, realizava um almoço a cada 15 dias, e serviu como fonte de estímulo e apoio para Leta até o final de sua vida.
- Em 1914, com seu mestrado em mãos, ela conseguiu um emprego para aplicar testes de inteligência Binet-Simon* em um hospital para deficientes mentais, o “Clearing House for Mental Defectives”, e iniciou seus estudos com Edward Lee Thorndike, em Psicologia da Educação. A partir daí começou a combater cientificamente a suposição de que os homens eram intelectualmente superiores. Leta Hollingworth fez testes diários comparativos com homens e mulheres durante três meses, conseguindo provar, cientificamente, que o desempenho de ambos era igualmente bom em todos os momentos, inclusive no período menstrual, que os homens argumentavam desestabilizar e incapacitar as mulheres, agregando justificativa para mantê-las fora do mercado de trabalho.
- Foi também nesta época que Leta Hollingworth se tornou a primeira psicóloga do serviço público da cidade de Nova York, com o melhor resultado nas provas do concurso, e assumiu a chefia do laboratório psicológico do Hospital Bellevue.

- Em 1916 concluiu seu PhD. Em sua tese, denunciava que o governo restringia o lugar da mulher na sociedade: “Enquanto apontam que o objetivo da natureza feminina é a maternidade e o cumprimento dos deveres maternos, a sociedade restringe as possibilidades para as mulheres”. A tese rendeu a ela um espaço no livro anual dos maiores nomes da ciência norte-americana, o “American Men of Science”.
- Assim como esse, outros cinco artigos sobre psicologia feminina que Leta Hollingworth produziu sobre as barreiras sociais enfrentadas pelas mulheres serviram de subsídio para muitos grupos feministas da época, inclusive para a campanha sufragista nos Estados Unidos. Em 1920 as cidadãs norte-americanas conquistaram o direito de votar.
- Durante suas avaliações com pessoas de diferentes idades de ambos os sexos, crianças com pontuações mais altas foram as que ganharam sua plena atenção. Nessa época, crianças brilhantes eram relegadas a cuidarem de si mesmas, por conta do já surgido mito de que seriam autossuficientes. Ela mesma superdotada, Leta Hollingworth passou a propor um cuidado especial e um currículo diferenciado para esse público, por acreditar que o ambiente e o formato de educação eram fundamentais para o desenvolvimento adequado dessas crianças.
- Em 1922 iniciou um experimento com 50 crianças de sete a nove anos com QI acima de 155, para entender suas origens familiares, traços psicológicos, temperamentais e sociais. O estudo se tornou livro em 1926, “Gifted Children”, consolidando o uso do termo “gifted”, traduzido ao português como superdotada/o. O currículo enriquecido defendido na obra — até hoje referência na educação de estudantes com altas habilidades — culminou na criação da Speyer School, em 1936. A escola era especialmente direcionada a crianças superdotadas, iniciativa que não foi de todo apreciada pela sociedade, por ser vista como antidemocrática e seletiva.
- O incômodo refletia preocupação mais ampla com movimento que ganhara força no final do XIX e início do século XX, baseado na ideia de melhorar geneticamente a população por meio da seleção de características consideradas “desejáveis”. A eugenia, como se denominou o movimento, inspirava-se numa leitura equivocada da teoria da evolução de Charles Darwin. O termo foi popularizado por Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin. Galton foi também um dos primeiros a estudar e escrever sobre a superdotação nos homens. Leta Hollingworth “duelou” toda sua vida com os trabalhos de Galton — que não considerava a possibilidade de mulheres serem superdotadas.
- Não obstante, estudiosa das novas descobertas sobre fatores hereditários na transmissão das capacidades cognitivas, Leta Hollingworth sugeria estimular o aumento da taxa de natalidade entre as pessoas superdotadas e apoiou a ideia de esterilização involuntária de mulheres mentalmente deficientes. Mas, acima de tudo, ela defendia o direito das mulheres em não engravidar — posição que exerceu na sua vida pessoal, apesar de se saber superdotada.

- “Psychology of Subnormal Children” (1920), “Special Talents and Defects” (1923) e “The Psychology of the Adolescent” (1928) são outros três livros de expressão produzidos por Leta Hollingworth (nenhum deles traduzido ao português). Já no fim de sua vida, Leta Hollingworth iniciou trabalhos com crianças que tinham QI acima dos 180. O livro sobre esse trabalho, “Children Above 180 IQ” (1942), foi concluído após sua morte por seu marido, Harry Hollingworth, quem também escreveu a biografia da esposa. Sua vida foi encerrada precocemente em 1939, aos 53 anos, por um câncer abdominal que ela escondeu do marido por cerca de 10 anos.
- Ao falar sobre o reconhecimento como mulher de grandes realizações, ela escreveu: “Eu não sei. Eu era intelectualmente curiosa. Eu trabalhava duro, era honesta, exceto por aquelas pequenas trapaças que são ocasionalmente necessárias quando a autoridade é estúpida, não gostava de desperdício e nunca tive medo de empreender um experimento ou mudar de ideia. O lema da minha família, traduzido do latim, diz: ‘Eu amo testar’. Talvez essa seja a explicação” (em tradução livre), publicado em “Leta Stetter Hollingworth: A Biography” (1943), de Harry Hollingworth.
- Toda a contribuição que deixou para a psicologia, ciência bastante nova à época, rendeu a ela um lugar na lista de cerca de 200 nomes de maior expressão na área, registrada no livro “Eminent Contributors to Psychology” (1974), de Robert Watson. Somente outras 13 personalidades femininas estão presentes na obra, além de Leta Hollingwoth.
*Testes de inteligência Binet-Simon: Na busca por formas de analisar as capacidades de aprendizado de estudantes, o psicólogo e pedagogo francês Alfred Binet (1857-1911) desenvolveu o que foi considerado o primeiro teste de inteligência do mundo, em parceria com Théodore Simon.