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Se é visto como algo tão bom,
por que é tão difícil aceitar?

  • Se, supostamente, ter altas habilidades é algo tão bom, por que os relatos de quem já foi identificado sempre passa pela dificuldade de aceitação própria e dos outros? Em primeiro lugar, porque embora se acredite que ter habilidades acima da média facilita tudo na vida, em muitos aspectos é todo o contrário e, no mínimo, bem complexo. O reconhecimento da superdotação costuma ser um processo longo e traz muitos desafios, principalmente para os adultos, porque exige rever tudo que já foi vivido com novas lentes.
  • No caso da uruguaia Lucía, depois de ser identificada, em 2021, aos 26 anos, houve um primeiro momento de dúvida, porque ela já havia passado por quatro diagnósticos equivocados (transtorno de ansiedade, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, transtorno do espectro autista e Síndrome de Asperger). 
 
Foto da Etactics Inc. na Unsplash.

“Antes tarde do que nunca, se descobrir é sempre bom. Saber-se e conhecer-se. Porque não é pelo título, é porque ajuda a se compreender. Acho que é fundamental.
[…]
Foi muito difícil para mim aceitar a ideia de que alguém como eu, que dorme nas aulas, que sempre foi problemática em algumas coisas, que tem tanto problema com autoridade e que às vezes fica nervosa, seja superdotada. Mas quando comecei a ler do que se tratava, comecei a fazer uma lista de todas as coisas que eu sabia fazer, de todas as línguas que entendia, de todos os instrumentos que tocava, das coisas que aprendi a fazer quando menina… comecei a ver como tantos pequenos passos do meu desenvolvimento foram meio acelerados.
[…]
A identificação me ajudou a me livrar desses diagnósticos que ainda por cima fazem com que a gente seja medicada sem precisar de fato. Me ajudou a encontrar a razão da ansiedade, que é justamente por ter uma tempestade de coisas na cabeça. Me obrigou a buscar ferramentas para eu mesma poder administrar minha ansiedade. Me ajudou a me dar conta de que a desorganização da minha casa é totalmente produto da desordem da minha cabeça. Ajudou a me dar conta de que as atividades rotineiras não são pra mim e a não me sentir culpada por isso. Me ajudou a deixar de me culpar tanto, em geral.
[…]
Me senti aliviada também, porque todos aqueles sentimentos que eu tinha, aquela angústia, não eram porque eu estava fazendo algo errado, mas porque eu processava mais informações e conseguia ter uma empatia um pouco mais exacerbada do que a maioria das pessoas ou sentia de forma diferente delas. E não era porque eu estava ansiosa nem porque eu chorava por qualquer coisa. Lembro que, quando eu era pequena, me chamavam de ‘Maria Madalena’, porque eu chorava o tempo todo. Sempre me disseram que era errado, que não era preciso chorar, que era preciso ser forte, que era preciso aproveitar a inteligência que eu tenho, e isso e aquilo. Porque eu vejo alguém mal e isso realmente me afeta. Não vejo noticiário, porque fico muito mal. E passei a não ver mais isso como algo ruim. Sou capaz de perceber mais ou sentir mais intensamente, perceber o mundo com mais intensidade, e isso não é ruim. Foi como perceber que tudo bem se eu chorar, porque é mais uma demonstração dessa mesma inteligência.”

 

  • Descobrir-se já na fase adulta traz uma infinidade de questionamentos para a própria pessoa com superdotação. Depois de ser identificada, é preciso se identificar com as características da superdotação, e isso só é possível quando se conhece o que realmente é essa condição.
 

“Admito que minha definição [de superdotação] mudou muito [ao conhecer realmente a condição]. Mas ainda estou descobrindo como definir a superdotação. Porque é difícil, você tem que se conhecer muito. E acho que cada um define de um jeito um pouco diferente. No meu caso, é como uma forma mais intensa de ver o mundo. Eu definiria assim: como se tudo fosse mais intenso, as sensações são mais intensas, as informações que você recebe são em uma velocidade muito mais intensa e em muito mais quantidade, as expectativas que você coloca em si mesmo…. É tudo muito. Mas isso não significa que seja ruim. Apesar de gerar uma agonia.

 

  • E daí é preciso enfrentar outra questão: como contar aos outros? E o principal desafio está em que a grande maioria dos outros conhece tão pouco quanto a própria pessoa superdotada conhecia, mas a maioria dos outros não vai se dedicar tanto ao tema quanto a pessoa identificada.
 

“Para explicar a outra pessoa, o termo ‘altas habilidades’ ajuda um pouco mais [do que ‘superdotação’]. Uma forma que encontrei de explicar foi no sentido de ‘Olha, eu também tenho necessidades diferentes’.

[…]

“Quando fui contar sobre a superdotação para a minha família foi tipo ‘a gente sempre soube’, mas, ao mesmo tempo, ‘a gente também não aceita muito a ideia, porque não entende muito a ideia’. Mas é claro que não é fácil. Não é um conceito muito compreendido aqui e gera muita inveja, muita rejeição e também muita pressão.
[…]
Meu pai meio que ficou um pouco sem reação e minha mãe demonstrou certa rejeição, em parte por sentirem que não tinham se dado conta disso. Meus pais são dois acadêmicos que deixaram a academia. Na minha idade, minha mãe já tinha abandonado a carreira dela, já estava tendo filhos e tocando a vida. E eu continuo na minha carreira e tenho mais títulos do que eles. E isso os incomoda por algum motivo. Eu não entendo. Mas sempre houve muita competição familiar. Minha irmã só disse: ‘Eu sempre soube’.
[…]
Sempre fui muito sozinha, justamente porque não tenho um relacionamento familiar muito bom. Tive uma infância muito difícil. A única pessoa que me apoia mais é uma segunda mãe que tenho [amiga da família], mas ela não consegue entender muito [sobre altas habilidades]. Ela é pediatra, então foi muito boa para mim quando criança, mas não percebeu [minha superdotação]. Eles não aprendem isso na faculdade.
[…]
Eu tinha um relacionamento muito bom com minha irmã. Mas, neste momento, ela não está bem, está com problemas de saúde. Então estou praticamente sozinha. A não ser por um amigo que tenho certeza que tem altas habilidades também. Mas claro, como não é a inteligência típica, que se mede [com teste de QI, por exemplo], mesmo sendo óbvio para mim que ele é, ele não aceita a ideia de passar pela identificação. Mas ele é a pessoa que mais me apoia atualmente e que mais me ajuda a não me sentir mal por ser diferente até certo ponto.
[…]
O nível que alcançamos não é típico, então, às vezes, somos tão exigentes que acho que é por isso que demoramos tanto para sermos identificados. Nós meio que não sentimos que merecemos esse título. Mas é por isso que acho tão importante ter pessoas ao seu lado que te digam: ‘Sim, o que você faz não é totalmente clássico, não é o que se espera’.
[…]
Para mim [a descoberta da superdotação e sobre o que se tratava] foi um alívio, porque, além de me conhecer melhor, eu comecei a me permitir fazer outras coisas. Comecei a me permitir tocar piano, pintar e comecei a perceber que era muito boa fazendo essas coisas. Comecei a dar aulas para crianças em outras áreas que nada tinham a ver com o que eu havia estudado. E tive uma crise existencial na minha carreira [Lucía é química], até voltar à minha carreira, por senti que essa era minha paixão mesmo. Sempre gostei e continuarei gostando. Mas consegui me permitir dizer: ‘Tudo bem se eu quiser ganhar a vida com arte ou se eu quiser ganhar a vida ensinando crianças ou se quiser ajudar as pessoas’… Tudo isso também me fez entrar em contato com muitas informações sobre altas habilidades e sobre diferentes tipos de inteligência. E fui percebendo que eu não tinha apenas uma.”

 

Leia mais em: Muito de tudo um pouco: O múltiplo e profundo interesse na superdotação

  • Além de quebrar barreiras da negação, aceitar a identificação tem muito a ver com conseguir desenvolver a própria identidade como pessoa com altas habilidades. E esse não é um processo simples, leva tempo e demanda acompanhamento de profissionais especializados nessa condição.


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