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Quando o que seria pouco já é muito...

  • Entre os principais traços da personalidade de uma pessoa superdotada está sua aumentada capacidade perceptiva sensorial (o capítulo novo da 2a edição de “Deu Zebra! Descobrindo a superdotação” é inteiramente dedicado a essa questão). Quem tem altas habilidades costuma “sentir com mais intensidade”, o que é ainda multiplicado internamente por conta do também intenso processamento cerebral das informações, típico da superdotação. Associa-se, assim, à hipersensibilidade das pessoas superdotadas uma “hiper-reatividade” interna.

 

  • Por mais que tenha passado 37 anos lidando com alergias de pele, seletividade alimentar, hipersensibilidade a ruídos e luzes, ninguém nunca tinha associado tudo isso com superdotação, nem considerado os impactos disso no bem-estar e nos relacionamentos pessoais da pedagoga Luciane. Foi por sugestão de uma terapeuta corporal que ela começou a buscar resposta no autismo e acabou passando por um diagnóstico de “transtorno do processamento sensorial ou hiperresponsividade” até chegar à identificação de altas habilidades.
Foto de Tom Frances Palattao, na Unsplash.
Foto de Tom Frances Palattao, na Unsplash.

“Nunca tive sonho de casar, nem quando eu era criança, meu sonho era estudar, viajar, ter uma profissão e ter uma casa, esse era meu sonho desde pequena. Eu fiz pedagogia na UFPR, presencial, depois eu fiz Letras (EAD), português e inglês, eu fiz duas especializações — uma em neuropsicologia e aprendizagem e outra em gestão pública — e agora estou terminando mestrado em educação.
(…)
Eu tenho um pouco de dificuldade com relacionamentos, inclusive amorosos, tanto que estou solteira. Tenho dificuldade com gente que fala muito, com gente muito pegajosa também, porque tenho essa questão sensorial, tátil. E os homens, não adianta, eles são do toque físico, e eu tenho problema com a temperatura de uma pessoa que pega em mim. Não gosto da temperatura, assim, da outra pessoa muito perto de mim… E tem gente que não sabe o que quer da vida! Nossa, isso me dá nervoso. Então eu estava com alguém e a pessoa parava a faculdade não sei quantas vezes, e isso me irritava muito, porque eu não conseguia me ver, me projetar num futuro com uma pessoa assim. Com essa pessoa não dá, termina. Não dá.
(…)
Então eu tenho essa dificuldade de relacionamento porque até o barulho das pessoas comendo me irrita. Quando era criança, eu escutava minha mãe mastigando e isso me irritava profundamente. E nossa cultura é muito barulhenta! Parece que as pessoas gostam também de ouvir tudo muito alto. Eu acho muito estranho… Cada vez mais gente vivendo na cidade, os ambientes parecem que estão superlotados e os brasileiros não se preocupam em falar em um tom mais baixo, querem falar num tom bem alto, eles são muito expressivos…
(…)
Quantos anos eu sofri na minha vida com barulho. Não sei há quantos tempo lançaram isso, mas o cancelamento de ruído é uma condição mesmo de saúde para mim, senão a gente meio que enlouquece. Eu comprei um fone de ouvido com cancelamento de ruído que salva muito minha vida. Em ambientes mais discretos, eu coloco outro, que fica dentro do ouvido, ele também tem um bom cancelamento de ruído. E pra visão, eu comprei essa lente, ela acopla no meu óculos, e ela tira brilho de tudo. Eu uso pra dirigir à noite pro semáforo e pros faróis não me incomodarem.”
(…)
Eu sempre tive muita dor de cabeça quando precisava estar com muita gente. Minha mãe conta que, na minha infância, quando tinha visita em casa, teve episódios de eu colocar a mão no ouvido e chorar, querendo que as pessoas fossem embora. Eu lembro que teve uma vez que desmaiei na escola… Daí fizeram um check-up bem completo em mim e chegaram à conclusão de que eu devia evitar lugares barulhentos.
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Desde criança sempre tirei etiqueta de tudo. Eu tinha muita coceira na infância, nas pernas, nos braços, de tirar sangue. Mas os médicos sempre acharam que era alguma alergia. Eu só passava uns cremes. E eu ainda tenho seletividade alimentar, só comecei a comer alguns alimentos com 15 anos.
(…)
Me lembro que fui também a uma terapeuta do sono, numa época, porque eu também tinha muitos sonhos repetitivos, e ela começou a ver um padrão. Ela falou: ‘Você percebeu que tudo o que você não faria, você faz no sonho? Você tem pressão interna pra não errar.’
(…)
Agora adulta, como moro sozinha, eu chego do trabalho e fico em silêncio, num lugar sem muita iluminação, sem ruído, o que me ajuda a me recuperar. Eu sempre fui muito autônoma, sempre quis fazer tudo sozinha, eu gosto de ser autodidata, de estudar sozinha. Eu tinha raiva na escola e na universidade e tenho raiva de gente no trabalho que precisa perguntar tudo pro professor ou pro chefe. Ai que nervoso. Eu gosto de viajar sozinha, eu gosto do silêncio da natureza, da paz, eu gosto de refletir. Então eu sempre gostei de ficar sozinha e sempre fui fazendo as coisas sozinha.
(…)
Não sinto que os superdotados são nem melhores, nem piores [que os outros]. São diferentes no pensar, no sentir, no agir. Sermos reconhecidos como pessoas diferentes pode não ser algo totalmente agradável, mas ajuda a diferenciar características de problemas. E encontrar mais conforto na própria forma de ser.”

 

  • Sejam estímulos visuais, táteis, auditivos ou olfativos que passam despercebidos pela maior parte das pessoas, mas podem desencadear fortes enxaquecas e até vertigem nos superdotados, sejam reações raras a fármacos, tudo isso é parte do funcionamento desses neuroatípicos.

 

  • Mas, enquanto não tomam consciência da sua condição por meio da identificação, eles ficam mais expostos a sofrimentos e sentimentos de inadequação que costumam gerar impactos negativos para sua vida e seus relacionamentos, assim como aconteceu com Luciane. Aí está a grande importância de conhecer suas particularidades para poder se obter o devido apoio e conseguir dar o devido encaminhamento ao que é somente uma característica e não um defeito a ser consertado.

 

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