Muito de tudo a fundo: os múltiplos e profundos interesses na superdotação
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- O que parece mais provável para você: um jovem advogado de sucesso que é campeão de artes marciais ou um violoncelista de 36 anos que abre uma empresa de sequenciamento de células, após fazer um doutorado na área? Uma campeã de karatê e acupunturista ou uma bailarina e webdesigner? Um jogador profissional de pôquer, campeão internacional, que decide entrar para a universidade de biotecnologia ou uma advogada ambiental, violinista, poeta e coach para pessoas com altas habilidades?
- Em se tratando de altas habilidades, combinações inusitadas como essas são naturais. Mais do que altas habilidades em um só campo, os superdotados costumam ter destaque em duas ou mais áreas muito diferentes entre si. Quando dedicam todo seu potencial com seu hiperfoco a temas de interesse, podem ir longe, em mais de uma área ao mesmo tempo, inclusive. Como são ágeis, dão conta de uma variedade de atividades que demandariam mais tempo e esforço das pessoas típicas. O interesse diversificado e simultâneo é justamente uma marca da superdotação. A uruguaia Lucía conta como isso pode incomodar, quando não se tem conhecimento dessa condição.
“Para mim, foi difícil terminar a universidade. Eu tinha 22 anos, estava terminando minha graduação, mas me sentia um fracasso. Todos os meus colegas escolhiam uma área e iam se encaminhando. Um gostava de microbiologia, outra da indústria… Quando me perguntavam do que eu gostava, eu sentia que gostava de tudo, mas não sabia o que escolher. Decidir por uma coisa só me parece tão sem graça. (risos) O que às vezes acontece comigo é que não tenho tempo para fazer tudo que gosto. E eu sei que nunca terei tempo. Então, é como se eu tentasse juntar tudo. E então eu me sobrecarrego com coisas. Eu também faço bastante isso. (risos)
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Mas eu cresci numa cidadezinha no interior do Uruguai, onde não tinha muitas coisas. Não tinha um clube de xadrez na cidade. Eu queria estudar dança e tinha uma ou duas academias, mas não eram muito rigorosas no ensino da dança, como eu gostaria. Eu queria aprender piano e acho que a professora que tinha se mudou de lá (risos). Vim pra Montevidéu com 17 anos, porque não aguentava mais. E, claro, crescendo numa cidade com valores muito clássicos e rígidos, que não permitia que ninguém fosse muito diferente, eu não tinha o que fazer lá.
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Minha raiva com meus pais é que eles sabiam que eu tinha muita capacidade, mas só enfocaram na minha capacidade lógico-matemática e não me davam estímulos de outras coisas. E eles tinham os meios pra isso. Eu fazia contas com menos de 2 anos de idade. Andava com um ábaco para todos os lados. Era chamativo demais e pronto: ‘bom, a Lucía é pra isto’. Só que não… isso também faz muito mal, porque a pessoa acaba acreditando que só serve pra uma coisa. Eu nunca tinha provado nada relacionado à música, por exemplo, por conta dessa premissa de que as ‘melhores’ inteligências são a lógico-matemática e a linguística… Sinto uma raiva de que eu necessitava mais estímulos e apoio e não tive nem de parte do sistema educativo nem de parte da minha família.”
- Não se saber superdotado e não saber o que realmente é a superdotação pode trazer a sensação de desajuste e de encolhimento, já que as expectativas sociais tendem a “encaixotar” as pessoas em um único talento. Os múltiplos interesses e o gosto por se aprofundar nos assuntos de interesse nutrem a curiosidade latente das pessoas com altas habilidades.
- Por essas e outras que a identificação a qualquer idade, mesmo que tardiamente, é tão rica e libertadora. E é muito comum que as pessoas, depois de reconhecidas, deslanchem melhor na vida e na carreira. Ou melhor dizendo, nas carreiras, porque é muito comum que mudem completamente de área algumas vezes ao longo da vida.
“Acredito que [a identificação] me ajudou também a decidir como seguir com a questão da minha pós-graduação. Me ajudou a ver que eu não tinha que me especializar. Porque isso não vai com o meu perfil, e não vai combinar nunca comigo. E não tem nada de errado nisso, por mais que os professores e chefes digam que não é bom. Então eu me propus, dentro da pós, fazer uma tese que envolvesse cinco ou seis áreas que eu gosto”.
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“Dois meses depois que eu fui identificada, me matriculei no doutorado. Fazia uns dois ou três anos que eu estava tentando escolher em que tema fazer doutorado ou mestrado. Porque não conseguia encontrar uma única área em que pudesse me comprometer por cinco anos sem ficar entediada.
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Eu trabalho na universidade fazendo pesquisas diversas, tenho horário flexível e sei que é o único emprego em que me dou bem, porque todo dia é um tanto diferente, porque pesquiso coisas diferentes e faço coisas diferentes. Dentro da química eu passei por sete áreas, já passei por várias cátedras universitárias. Para mim é rico poder experimentar, e saber se gosto ou não daquilo. Mas, quando vão me entrevistar, veem que eu já trabalhei em muitas áreas diferentes e acham isso ruim. E me perguntaram na entrevista: ‘Bem, se você tivesse que escolher uma especialização, em que você faria?’ E eu pensei: ‘Que gente com visão limitada’. Não quero ser obrigada a escolher. Eu não iria fazer uma pós-graduação de cinco anos em um único tema ou um ponto fixo. Fico entediada e sinto que a linha de investigação é muito restrita. Percebi que precisava de algo multidisciplinar. E aí propus, dentro da pós-graduação, fazer uma tese de pesquisa que tivesse cinco ou seis áreas que eu gostasse.”
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Acontece que tento uma atividade e, quando chego a um nível, por estar um pouco acima da média, fico entediada e já passo pra outra atividade. Muitas vezes temos medo de tentar coisas diferentes, simplesmente porque não estamos acostumados. Mas, quando a gente encontra coisas de que gosta, é um incentivo a tentar algo mais, totalmente diferente.
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Para mim, realmente, as outras inteligências [e não a lógico-matemática] foram as que me resgataram da situação da pandemia, com todo o estresse que tive, estando com uma doença autoimune e sozinha. Eu estava desempregada, e decidi tentar pintar com aquarela. Daí comecei a vender os quadros que pintava e fui dar aulas para crianças com TEA [transtorno do espectro autista] e fazer outras coisas que não tinham nada a ver com a minha área de formação [Química]. E percebi que essas habilidades me garantiram uma satisfação que as ‘ciências mais duras’, como chamamos aqui no Uruguai, não me davam. E agora, além das pesquisas em Química, que voltei a fazer, porque gosto e sei que o que faço vai ajudar até certo ponto, quero tentar escrever.”