Helena Antipoff (1892-1974): a russa que revolucionou a educação dos neurodivergentes no Brasil
- A psicóloga e pedagoga russa Helena Wladimirna Antipoff (1892-1974) já tinha participado de grandes avanços na área da educação na então União Soviética e na Europa, quando desembarcou no Brasil, em 1929. Trouxe na bagagem métodos educacionais embasados na psicologia, com um olhar sensível para os neurodivergentes. Seus estudos e trabalho sempre tiveram como foco a educação especial e a psicologia educacional. Foi a pioneira nessa área no Brasil, país que aprendeu a amar e nunca mais deixou.
- Foi ela quem criou o termo “excepcionais”, que se tornou internacionalmente usado para denominar estudantes antes estigmatizados como “retardados”, por apresentarem resultados abaixo da média. Mas Helena também deixou uma grande contribuição para o desenvolvimento dos “excepcionais” do outro lado da curva de Gauss: os superdotados.

- Em sua formação em Paris e em Genebra, já como profissional graduada, participou da aplicação dos primeiros testes de medição de inteligência em crianças e dos modelos de adaptação do ensino para diferentes capacidades. Veio para o Brasil, em 1929, a convite do governo de Minas Gerais. Helena Antipoff foi chamada para dirigir o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte e colaborar na reforma nacional do ensino, aos moldes da Escola Nova (movimento educacional, na primeira metade do século XX, que propunha mudanças no ensino, tornando a educação mais centrada no aluno e em sua experiência prática).
- Pouco tempo depois de sua chegada, em 1932, tendo a ciência como guia para suas iniciativas e ações, Helena já liderava a criação da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, congregando enfermeiros, médicos, psicólogos e professores, para colaborar com o trabalho dos professores das classes especiais das escolas públicas de Belo Horizonte. Suas propostas eram inovadoras. Suas práticas eram humanistas e democráticas, colocando a criança como protagonista do seu próprio aprendizado.
“Temos que tirar nossos alunos das galeras”, dizia Helena Antipoff. Ela considerava que a disposição das salas, com fileiras de carteiras e professores escrevendo na lousa, lembrava o convés das embarcações de guerra movidas a remo.

- Em 1940 iniciou a instalação do complexo educacional da Fazenda do Rosário, em Ibirité-MG, hoje região metropolitana de Belo Horizonte. A Fazenda do Rosário apresentou ao Brasil dois conceitos então pouquíssimo conhecidos: a escola rural e a escola integral. Ali ela criou, além de uma casa de repouso para intelectuais, um internato para educar crianças “excepcionais” e formar professores para trabalhar com esse público. Uma de suas alunas foi Zenita Guenther, que passou a morar na Fazenda em 1949 e, mais tarde, tornou-se outra referência nacional na área da superdotação. [D. Zenita também terá aqui no Deu Zebra! um post especialmente dedicado a ela]
Na época, Antipoff buscava adolescentes de 12 a 14 anos com vocação para o magistério. “Nós éramos internos, 40 moças e cerca de 10 rapazes. De manhã fazíamos trabalhos: na mesma hora que uma turma arrumava o alojamento, outra plantava horta para termos verduras na comida, outra cuidava do escritório, das correspondências, dentre tantas outras atividades para manter a Fazenda andando. Ninguém escolhia onde ia trabalhar, era um rodízio constante, todo mundo tinha de passar por todos os setores, durante três horas por dia. Depois disso, tínhamos aulas com bons professores. E no fim do dia, às 17h, era hora dos clubes. Nós tínhamos o clube da música, da ginástica artística, das artes visuais, clube de economia doméstica e tinha um que chamava LARC (linguagem, arte e recreação), do qual eu participava. A gente escrevia peças para representar, também visitávamos a vizinhança para ver se o pessoal estava tendo algum lazer… No começo não tinha nem férias de julho, depois ela começou a dar férias de julho, com muita pressão”, contou D. Zenita, aos 84 anos de idade, em entrevista para o livro “Deu Zebra! Descobrindo a superdotação”.

Em paralelo, desde 1929, Helena Antipoff procurou também sensibilizar o Brasil para a necessidade de atender às necessidades da parcela da população que estava no outro extremo das medições de inteligência. Essas crianças e adultos que se sobressaíam da média da população em geral, nas diversas áreas de desenvolvimento, ela preferia designar como “bem-dotados” (para evitar a estigmatização que acreditava ser gerada pelo prefixo “super”).
- Buscando alternativas concretas que pudessem favorecer o pleno desenvolvimento desses indivíduos, ela criou, em 1945, o primeiro atendimento educacional especializado aos bem-dotados, na Sociedade Pestalozzi do Rio de Janeiro — época em que morou na então capital do Brasil. Na sua busca por talentos, Helena Antipoff nunca restringiu seu olhar às capacidades intelectual e cognitiva, sempre considerou também os talentos artísticos, científicos e esportivos. Buscava inclusive entre os adultos.
“A Dona Helena seguia o vendeiro e a parteira, por exemplo, que eram pessoas que se sobressaíam na comunidade, porque quando precisava-se deles, eles compareciam a qualquer hora e respondiam à demanda. Depois ela viu que realmente essas pessoas tinham inteligência, não a inteligência escolar, essa que nós valorizamos, mas a inteligência da vida: entender o problema e procurar solução. Quando isso se acumula com preocupação social, quero dizer, com amor pelo outro, com a solidariedade, nós temos aí uma pessoa altamente produtiva. No adulto superdotado é assim, ele se revela pela sua produção. É mais produtivo que os seus pares e sua entrega é melhor”, resume D. Zenita.
Embora Helena Antipoff já tentasse chamar atenção para esses neurodivergentes havia muitas décadas, apenas em 1970, aconteceu o I Seminário sobre Superdotação no Brasil, em Brasília. Nesse mesmo ano, foi feita também a primeira menção ao superdotado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: “os superdotados deverão receber tratamento especial, de acordo com as normas fixadas pelos competentes Conselhos de Educação”. (Brasil, 1971, art 9º).
- Passando a contar com esse respaldo, Helena Antipoff colocou em prática um novo projeto voltado para a educação dos bem-dotados. Comprou outra propriedade em Ibirité, e fundou ali, em 1973, a ADAV – Associação Milton Campos para o Desenvolvimento e Assistência de Vocações de Bem-Dotados, para oferecer aos jovens talentosos encontros semanais nos fins de semana e colônias de féria em um ambiente físico, educativo, cultural e social, que estimulasse e propiciasse o desenvolvimento de suas habilidades.
- As escolas passaram a indicar alunos com desenvolvimento superior para ter atividades extraclasse na ADAV. Mais uma vez o regime de liberdade, aliado ao da responsabilidade, já testado e aprovado na Fazenda do Rosário, mostraram trazer os melhores resultados também na educação das crianças com altas habilidades na ADAV.
- Entre 1970 e 1974, até sua morte por câncer aos 82 anos, Helena Antipoff se dedicou a uma produção escrita a respeito das pessoas com altas habilidades. “Ela se sentia em dívida com os bem-dotados, porque já tinha deixado um grande legado em prol dos deficientes, e ela sentia que algo devia ser feito desde aquele momento para esse outro extremo da população”, garantiu Cecília Antipoff, psicóloga, doutora em educação e bisneta de Helena, em documentário sobre a Fazenda do Rosário.
Helena Antipoff é reconhecidamente a precursora da hoje chamada Educação Especial no Brasil, com expressão internacional na psicologia e na educação do século 20 — imortalizada pela pluma de Carlos Drummond de Andrade:
“Não presidente, não ministro,
aos 80 anos dirige um mundo-em-ser.
A casa de Helena é a casa de daqui a 20 anos,
de daqui a 50, ao incontável.
Casa pousada em nós, em nosso sangue.
Podemos torná-la real: o risco de Helena
fica estampado na consciência.
E quando Helena 1974 se cala
na aparência mortal,
seu risco viçoso e alegre e delicado perdura,
lição de Helena Antipoff mineira universal.”

Documentário “Entre Mundos – vida e obra de Helena Antipoff”:
https://www.youtube.com/watch?v=LxIEytO0FKY&t=1823s
A Casa de Helena
Carlos Drummond de Andrade
Russa translúcida de sorriso tímido
(assim a contemplo na retrovisão da lembrança),
Helena 1929 enfrenta os poderes burocráticos.
Suavemente,
instaura em Minas o seu sonho-reflexão.
Moças normalistas rodeiam Helena.
Traz um sinal novo para gente nova.
Ensina
a ver diferente a criança,
a descobrir na criança
uma luz recoberta por cinzas e costumes,
e nas mais carentes e solitárias revela
o princípio de vida ansioso de sol.
Helena é talvez uma fada eslava
que estudou psicologia
para não fazer encantamentos; só para viajar
o território da infância e ir mapeando
suas ilhas, cavernas, florestas labirínticas,
de onde, na escuridão, desfere o pássaro
— surpresa —
melodia jamais ouvida antes.
Helena reúne
os que não se conformam com a vida estagnada
e os mandamentos da educação de mármore.
Leva com eles para o campo
uma ideia-sentimento
que faz liga com as árvores
as águas
os ventos
os animais
o espaço ilimitado de esperança.
Fazenda do Rosário: a fazendeira
alma de Minas se renova
em graça e amor, sem juros,
amor ciente de seus fins
de liberdade e criação.
E essa pastora magra, quase um sopro,
uma folha talvez (ou uma centelha
que não se apaga nunca?) vai pensando
outras formas de abrir, no chão pedrento,
o caminho de paz para o futuro.
Helena sonha o mundo de amanhã,
recuado sempre, mas factível
e em mínimas sementes concentrado:
estes garotos pensativos,
esse outro ali, inquieto, a modelar
engenharias espaciais com mão canhota,
aquele mais além, que se revolta
procurando a si mesmo, e não se encontra
no quadro bitolado dos contentes.
Viajantes sem pouso
no albergue corriqueiro,
Helena os chama e diz: Vou ajudá-los.
Não presidente, não ministro,
aos 80 anos dirige um mundo-em-ser.
A casa de Helena é a casa de daqui a 20 anos,
de daqui a 50, ao incontável.
Casa pousada em nós, em nosso sangue.
Podemos torná-la real: o risco de Helena
fica estampado na consciência.
E quando Helena 1974 se cala
na aparência mortal,
seu risco viçoso e alegre e delicado perdura,
lição de Helena Antipoff mineira universal.
Poema publicado no livro “Discurso de primavera e algumas sombras” (1978)